24 Abril 2017
Uma demissão papal não causada pela morte “deve ter características de ‘morte’ muito mais acentuadas. O silêncio na oração deve ser total e deve envolver também os colaboradores. Os sinais exteriores, como a veste branca, devem desaparecer. A distância da autoridade deve ser plena e radical, não só no plano formal, mas eu diria também no ‘geográfico’.”
A opinião é do teólogo italiano Andrea Grillo, professor do Pontifício Ateneu Sant’Anselmo, em Roma, do Instituto Teológico Marchigiano, em Ancona, e do Instituto de Liturgia Pastoral da Abadia de Santa Giustina, em Pádua. O artigo foi publicado por Adista, 22-04-2017. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Segundo ele, "um exemplo significativo da ambiguidade está na publicação, por ocasião dos 90 anos do bispo emérito, de um “inédito” – que remonta há dois anos – em que se apresenta um discurso sobre a liturgia, literalmente, “traumatizado” pela reforma litúrgica e no qual se confunde a liturgia com uma leitura apologética e antimodernista dela, que tem no seu centro a afirmação do primado do agir de Deus sobre o agir do homem".
Há quatro anos em Roma, ao lado do bispo e Papa Francisco, temos um bispo emérito, que acaba de completar 90 anos de idade. Para a nomenclatura episcopal, isso não é nada de extraordinário. Mas, para a instituição e o imaginário papal, assim como foram se estruturando especialmente nos últimos séculos, isso é algo quase inconcebível. O fato de haver, ao lado do papa “reinante”, um papa “emérito”, representa uma releitura implícita da autoridade papal e um repensamento da sua função eclesial.
É preciso reconhecer abertamente que essa decisão do Papa Bento levou a Igreja Católica a uma objetiva aceleração. Depois de tanto freio, uma acelerada súbita e providencial. Ao mesmo tempo, a permanência, ao lado de Francisco, da figura do “papa emérito”, que ainda se veste de branco e que permanece “autorrecluso em oração” no recinto de São Pedro, no Vaticano, ofereceu alguma razão para formulações confusas, para teorias distorcidas, para pastiches institucionais e pessoais. Mesmo para além das intenções.
Portanto, a escolha de Bento foi clarividente e, ao mesmo tempo, traumática. Ela introduziu uma condição provisória que pode ser lida como paralelismo entre papas, como integração entre perspectivas, como articulação entre ministérios... e a fantasia não falta nem fora nem dentro do Vaticano.
É precisamente o prolongamento dessa condição que deve fazer refletir, mostrando os limites intrínsecos da solução adotada. Uma certa “personalização” do emeritado deverá ser, no futuro, excluída. Nada de veste branca, nada de proximidade de sede com o papa, nenhuma comunicação pública deveriam se tornar condições formais para a possível repetição de tal experiência.
Só com essas condições o sucessor seria efetivamente livre para prosseguir “além”, sem o condicionamento de uma “proximidade” pesada demais.
O fato de que, sobre algumas decisões e sobre algumas nomeações, o papa emérito ainda exerceu uma autoridade – mesmo que apenas de um direito de veto – determina uma alteração do sistema que, no longo prazo, torna-se difícil demais de gerir. Estilização monástica claustral e conservação de âmbitos de autoridade, de fato, não se deixam harmonizar em tempos longos.
Um exemplo significativo dessa ambiguidade está na publicação, por ocasião dos 90 anos do bispo emérito, de um “inédito” – que remonta há dois anos – em que se apresenta um discurso sobre a liturgia, literalmente, “traumatizado” pela reforma litúrgica e no qual se confunde a liturgia com uma leitura apologética e antimodernista dela, que tem no seu centro a afirmação do primado do agir de Deus sobre o agir do homem. Essa idealização da liturgia deturpa as razões da Reforma litúrgica e distorce profundamente o seu sentido. Dá voz a uma “vontade de contradição” que o próprio Ratzinger, no seu “Último Testamento”, confessou como uma inclinação sua de antiga data.
Tudo isso assinala um problema e uma oportunidade: para o papado, tal como se desenvolveu ao longo dos últimos séculos, a possibilidade de uma “demissão do ministério” diferente da morte do ministro é realmente uma grande novidade, um gesto corajoso e uma atestação de grande realismo. Talvez, porém, nas coisas humanas, nunca se chegue imediatamente à plenitude de um gesto. Justamente por isso, a sua “incompletude” também assinala o seu limite.
Uma demissão do ministério petrino diferente da morte deve ter características de “morte” muito mais acentuadas. O silêncio na oração deve ser total e deve envolver também os colaboradores. Os sinais exteriores, como a veste branca, devem desaparecer. A distância da autoridade deve ser plena e radical, não só no plano formal, mas eu diria também no “geográfico”. A renúncia ao exercício do ministério redimensiona a autoridade do papa: inevitavelmente, também a do sucessor. Mas apenas dentro de certos limites.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Papa Bento: luzes e sombras de uma sucessão sem morte. Artigo de Andrea Grillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU